Há um movimento em curso, e boa parte da sociedade brasileira, ainda sob o julgo da colonização, sequer o reconhece. A retomada étnica, movimento pessoal e intransferível, também chamado de reencontro ancestral, tem sido o caminho trilhado por muitas pessoas que buscam reconexão com suas raízes indígenas. São pessoas que carregam, em seus traços e em sua cor, a herança de pais, avós, bisavós, e, também, aquelas que, mesmo sem todos os traços fenotípicos visíveis, encontram sua linhagem entre os 305 povos indígenas ainda existentes no país, além dos muitos outros que foram dizimados durante a invasão europeia.
O tema tem sido objeto de teses e dissertações nas universidades brasileiras, livros publicados pelos próprios parentes (ver sugestões ao final) e incontáveis postagens nas redes sociais. O conceito se ancora no princípio da autodeterminação dos povos, respaldado pela legislação brasileira e por tratados internacionais de direitos humanos. Mas, por que o chamado ancestral ecoa apenas para alguns? Por que ainda são poucos os que têm acesso aos mundos indígenas, à literatura indígena que acolhe, ensina e abre caminhos para a identificação pessoal e coletiva? Parte da resposta está no silenciamento histórico e na persistente resistência de muitos descendentes, ainda imersos em lógicas colonizadas.
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O discurso recorrente: “nasci na cidade, não sou mais indígena”, ainda impera no senso comum. No entanto, trata-se de uma visão injusta e que precisa ser superada. Os povos originários foram, em muitos casos, forçados a migrar de suas terras, expulsos pela violência do colonizador que, no passado, sequer os reconhecia como seres humanos dotados de direitos. A incivilidade europeia, ao invés de chegar com respeito, escuta e partilha, tratou os indígenas como inferiores, tamanha era sua própria barbárie.
Fazer o processo de retomada é buscar o elo quebrado com os ancestrais. Esse caminho de reencontro se tece por afinidades com a natureza em todas as suas formas, pela reaproximação com os cantos, os saberes, as comidas, as bebidas, as curas, as rezas, os adornos de penas, a experiência de uma temporalidade própria, mais respeitosa dos ciclos da vida. Retomar é adentrar outra matriz civilizatória, que existe e resiste, apesar de tudo, em todo o território brasileiro.
Tomar consciência étnica é revolucionário. É um passo fundamental para buscar outros modos de vida e de pensamento, decolonizando-se na prática cotidiana. Comece perguntando aos mais velhos da sua família, investigue o local de nascimento de seus pais ou avós. Que povo ali habitava? Aproxime-se desse povo. Leia seus livros. Conheça seus projetos. Apoie suas causas, especialmente a luta pelos territórios, e o direito das crianças indígenas de aprender a ser quem são. Ensine também aos seus pequenos a honra que há em conhecer sua própria origem.
Não se trata de um processo obrigatório, tampouco simples. Há conflitos pessoais, familiares: muitas vezes permeados por negações e silenciamentos. Há quem prefira destacar “o sangue europeu do avô” ao invés de reconhecer o avesso indígena da avó. São marcas profundas de uma colonização ainda em curso.
O tema é vasto, complexo, cheio de nuances e tensões, inclusive entre os próprios pesquisadores e pesquisadoras da área. Mas a retomada é, para muitos de nós, um caminho sem volta. Os dados do último Censo do IBGE mostram esse movimento: antes éramos pouco mais de 800 mil; hoje somos quase dois milhões. Ainda é muito pouco. Na chegada violenta dos europeus, éramos pelo menos dez milhões. A reconstrução dessa presença exige um longo percurso, mas ele pode ser trilhado ao som dos chocalhos, com os pés tocando a terra-mãe e os braços dados em coletividade.
Leituras recomendadas para aprofundamento sobre retomada étnica:
• A retomada das indígenas: reflorestando o lugar de mulher, de Amanda Pankararu (2023);
• Tese Ruptura histórica e abordagem criativa: uma cartografia de identidades nativas, de Fernanda Vieira de Sant’Anna;
• Tempo de Retomada, de Trudruá Dorrico(2023);
• E, em breve, no repositório da UNESP, a tese da autora que vos escreve: Mestra Makuxi Vovó Bernaldina: uma leitura dos eremukon de Merinácomo expressão decolonial.
Foto: Canva – Banco de Imagens