Abelardo, o cachorro mestre de cerimônia do “Festival SESI Cultura Infância – Uma Visão de Futuro” denunciou antes: crianças, este espetáculo nos ajuda a vencer o medo, o cruel medo, e vocês vão gostar de vencer este medo. A Buia Teatro Company, na direção de Tércio Silva e texto de Karen Accioly, demonstra que o Teatro consegue vencer tudo, desde que seja feito com esmero e perícia. O Teatro do Buia tem esta característica exemplar, pois é feito a partir de minuciosa pesquisa antes de adentrar em cena, e mesmo ao longo de suas temporadas novas possibilidades acontecem e repaginam a estrutura da encenação.
É notável a coesão do elenco e as possibilidades e dinâmicas que Cabelos Arrepiados proporciona aos infantes espectadores. Tudo tem precisão cênica, são poucas as montagens que conseguem o trunfo de facilitar a vida de quem assiste a partir do simples fato de traçar uma narrativa onde não só a palavra, mas todo o arcabouço de cena transmite com leveza a trajetória dos personagens envoltos em sonhos e pesadelos. O Buia é craque nisso! A experiência adquirida por Tércio Silva o coloca como um jovem diretor assentado na premissa do Teatro para infância e juventude com um olhar para o futuro e não para o passado de um Teatro feito aos solavancos, onde a criança seria um mero observador, onde o riso das crianças se dissipa assim que termina a peça.
Não, o Buia faz este sorriso prosseguir, de forma lúdica e lúcida, até este sorriso transformar-se em pensamento e reflexão, e isso não tem idade, serve para todo mundo. Os aparatos cênicos de Cabelos Arrepiados, suas referências essenciais, são as atmosferas propostas por artistas que transitam entre o horror gótico e o grotesco, onde cito referências de grandes nomes da literatura e do cinema. A narrativa de Cabelos Arrepiados carrega traços de histórias extraordinárias de Edgar Allan Poe e o medo e suspense que elevam seus escritos a patamares superiores, onde o que se narra vai criando elos indissociáveis entre as personagens e o seu entorno sombrio. Outra referência que cito é a do ilustrador e escritor Edward Gorey, nome poderoso e pouco conhecido desta vertente do gótico infantil. Os desenhos de Goreysão projeções de medos e anseios de toda criança, e de como é impactante para a mente juvenil entrar neste labirinto que é a vida e suas novas descobertas.
Para concluir meu elenco de referências de Cabelos Arrepiados destaco sobremaneira a figura imponente do artista e cineasta Tim Burton, onde a montagem teatral ganha sua melhor definição, e o que é mais louvável, não é um mero espelho decorado a partir todas estas brilhantes produções destes três artistas citados. Poe, Gorey e Burton aqui gozam do mesmo patamar de Tércio Silva e Karen Accioly neste universo em espiral de sonhos e pesadelos que são Cabelos Arrepiados, ou seja, o diretor não é refém de nenhum destes grandes nomes da arte narrativa e gráfica.
Tico, Cora, Flora e Dora, além de Ciro e Clara são personagens potenciais de um Teatro vigoroso, o palco giratório com motivo em espiral, que infelizmente desta vez assisti num plano abaixo, perdendo seu potencial mágico no palco italiano, e que funciona lindamente num anfiteatro, onde a visão fica privilegiada pelo angulo de observação da espiral, mas este detalhe não destrói a história musicada de Cabelos Arrepiados, é só um detalhe técnico apontado aqui, que não interfere no essencial: a emoção das crianças. Os objetos cênicos, bonecos e seres espectrais elevam a encenação ao patamar de um profissionalismo absoluto, a partitura sonora, minimalista, é de um deleite aos ouvidos.
Cada uma das personagens tem um receio, um medo engendrado por algum motivo, talvez um grande segredo, um terrível mistério. Imponente destacar que este tema sensível às crianças, de como lidar com o medo, é a pedra de toque de Cabelos Arrepiados, que prioriza a delicadeza em tratar de temas assustadores, especialmente o abuso infantil. O Buia mostra e alerta sem verdadeiramente apresentar diretamente, e isso é espetacular quando se trata de Teatro para infância e juventude, em especial. Poucas montagens são tão eficientes em levar assuntos tão sérios de maneira estética consistente, sem mascarar a situação ou exagerar na mensagem, tornando-a direta e agressiva.
O Buia faz do absurdo criminal uma arte poderosa e de alerta. Cabelos Arrepiados, em cada passagem de cena, na apresentação de cada personagem, em cada quadro de giz que observamos, em cada giro do palco espiralado, nos suga para uma máquina do tempo, o tempo onde o Teatro impera absoluto, colossal, vertiginoso e recheado de surpresas, onde o figurino, a música, a iluminação e a força de atuação de seu elenco são jorros criativos de vasos comunicantes de emoções e de brilho nos olhos. Se todo pesadelo sonhado fosse como Cabelos Arrepiados, o mundo, pelo menos o mundo do Teatro feito para infância e juventude, seria melhor, infinitamente melhor. O Teatro do ICBEU, neste “Festival SESI Cultura Infância – Uma Visão de Futuro” foi o palco de Cabelos Arrepiados, daBuia Teatro Company, de Manaus, em 17 de outubro de 2024.
ARTIGO: Jorge Bandeira
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*Categoria: artigo
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Ficha Técnica
Texto: Karen Acioly
Direção: Tércio Silva
Elenco: Magda Loiana, Dimas Mendonça, Roque Baroque, Diirr, Elton Nogueira, Chris Rebello
Composição e Direção Musical: Jeferson Mariano
Figurinos: Maria Hagge
Iluminação: Orlando Schaider e Tércio Silva
Cenário: Tércio Silva
Maquiagem e Caracterização: O Grupo
Formas Animadas: Dante e Diirr
Cenotécnico: Wanderley Cenografia
Projeto Gráfico: Dante
Design de Som: Murilo Acioli
Operação e Adaptação de Luz: Orlando Schaider
Assessoria de Imprensa: Vanessa Angeiras
Produção Geral: Buia Teatro Co.