César Augusto de Oliveira

Quem tem medo de ‘Vale Tudo’?

Desde bem antes da sua estreia, a nova versão da telenovela “Vale Tudo”, de 1988, na TV Globo, já vinha agitando as redes sociais e a imprensa especializada com expectativas e ataques dos nostálgicos e da turma do apito de cachorro. O clássico da teledramaturgia escrito pelo saudoso Gilberto Braga em parceria com a também saudosa Leonor Basseres e o veterano Aguinaldo Silva foi um grande marco nos últimos anos da década de 1980, por ser uma criação bem focada na realidade brasileira que ia muito além do universo maniqueísta típico de folhetins. Ali, o pano de fundo da história da batalhadora Raquel (Regina Duarte) e sua filha mau caráter Maria de Fátima (Glória Pires) escancarava um Brasil onde a corrupção parecia um estilo de vida atraente, principalmente para uma elite representada pela vilã Odete Roitman (Beatriz Segall).

Foto: divulgação / Globo
Foto: divulgação / Globo

Trinta e sete anos depois, o “esqueleto” da história, agora nas mãos de Manuela Dias, permanece com a mesma essência, dado o assunto atemporal abordado pelo trio de escritores do original. Mudanças foram feitas, afinal de 1988 para 2025 muita coisa mudou com a modernidade dos celulares, o surgimento das redes sociais, a emancipação feminina e a valorização da diversidade, ainda que focos de falso conservadorismo mantenham-se como ameaça real presente. E foi nesse ponto que surgiu a grande discussão sobre o sucesso da nova versão.

Na nova “Vale Tudo”, Raquel Accioly é interpretada por uma atriz negra, Thaís Araújo. Sua filha Fátima, defendida por Bella Campos, também negra, agora quer se destacar como influencer, e sua interpretação acaba caindo como uma luva ao mostrar a idiotização que é a marca da maioria dos que estão nesse meio. Odete Roitman é uma mulher com vida sexual mais evidenciada na interpretação da veterana Débora Bloch, e com uma perversidade que se esconde em doses de ironia e deboche com os que a cercam.

Somente essas três personagens já geraram barulho demais: uns as defendem, outros as criticam. Raquel agora revidou o tapa levado pelo então marido Rubinho nas primeiras cenas da novela, reforçando seu amor próprio e sua atitude diante da violência, ao contrário da outra versão que se limitou a chorar de tristeza pela ruína do casamento representada pelo tabefe. Fátima manteve a mesma falta de caráter e sordidez, mas no seu trato com o cúmplice e gigolô César Ribeiro (Cauã Reymond), dá as cartas e não se submete a qualquer humilhação. E a icônica Odete usa e abusa de sua índole cruel para manipular os homens à sua vontade, levando-os para a cama e descartando-os, numa bela inversão de papéis de gêneros.

Junte-se a isso uma abordagem mais aberta da relação das personagens Cecília (Maeve Jenkings) e Laís (Lorena Lima), agora casadas, donas de si e prestes a adotarem uma criança. Vale lembrar que no original, o relacionamento entre as duas sempre era sugerido e a personagem Cecília morria em um acidente – resultado, dizem, de pressão das“famílias de bem” incomodadas, mesmo Gilberto Braga tendo dito em algumas ocasiões que a morte já estava certa no plot da novela.

LEIA TAMBÉM: ARTIGO – O que pensa essa gente?

Essas novas características – vou deixar de lado aqui o mérito das interpretações – trouxeram incômodo geral. Em qualquer publicação em redes sociais sobre a novela, encontramos comentários machistas, etaristas e mesmo racistas – e não são poucos. Atacam Odete taxando-a de “ninfomaníaca”, como se mulheres sexagenárias não tivessem o direito de demonstrar sensualidade nem ter relações sem compromisso – o que comumente é muito bem aceitável no universo masculino, mas impensável para a natureza feminina, fadada a uma libido reprimida. Fátima é atacada pelo seu comportamento bobo e meio forçado – mas, convenhamos: você vê um desses que se dizem influenciadores fazendo caras, bocas e picaretagens para influenciar não sei em que seus seguidores e enxerga a personagem perfeitamente. Raquel incomoda pelo seu forte senso de honestidade e de conquista do sucesso pelo trabalho: em 1988, uma mulher branca tinha o mesmo pensamento, e não houve tanto auê. Isso só mostra que no espaço de tempo entre as duas versões, o pensamento do brasileiro comum é: honestidade é burrice e mulher tem que se dar respeito até na roupa usada (e ouvi isso de um motorista de aplicativo um dia desses, quando o carro passou por duas mulheres de bermuda curta).

Enfim, a polêmica em torno da nova versão também é causada por um saudosismo tóxico a ser deixado de lado. Confesso que me esforcei e estou conseguindo acompanhar a nova “Vale Tudo” seguindo o conselho da veterana Renata Sorrah, intérprete da alcoólatra Heleninha Roitman em 1988 (papel hoje de Paolla Oliveira): em entrevista recente ao programa “Sem Censura”, quando questionada sobre a reação do público ao remake, ela foi incisiva em sugerir que o telespectador deveria se “desgrudar” da versão original, evitando as comparações entre as duas versões, e ela própria não poupou elogios a seus colegas no remake.

Preconceito e saudosismo juntos não impulsionam críticas válidas. Como Débora Bloch afirmou em entrevista recente, todo mundo quer dar opinião e é livre para isso, mas é necessário conhecimento sobre o que se fala. Sem isso, só tem lacração sem noção.

E viva “Vale Tudo”!

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