Vanessa Brandão

Jogaram Pssica na Cop 30


“Pssica” marca o momento de grande interesse em filmar na Amazônia. Fernando Meirelles e o filho, Kiko Meirelles, entregam uma minissérie cheia de cores, cenários belíssimos, ação e uma sensação desconfortável, principalmente para as mulheres, durante todo o enredo. Em que pese todo o lado positivo de ter uma megaprodução como esta gerando emprego e renda na região, a obra deixa de lado o maniqueísmo e opta por retratar praticamente todos os personagens como gente muito ruim.

É um universo perverso, uma terra sem lei, onde crianças indígenas andam sozinhas nas ruas sendo utilizadas para pequenos delitos, e meninas são sequestradas à luz do dia, pelo menos cinco delas no mesmo dia, sem que nenhuma autoridade policial se compadeça do absurdo. Uma obra em que pai omisso, mãe fanática religiosa e jovens perdidos entre o crime organizado e o uso de crack são figuras comuns dessa sociedade perversa na qual ninguém se salva.

Não li o livro de Edyr Augusto que dá origem ao roteiro de Pssica. Desse modo, não posso afirmar quem pesou a mão na hora de apresentar o “mundo cão” que se passa entre Belém, Ilha do Marajó, Breves, Tucuruí e Guiana Francesa, lugares agora mais queimados do que castanha de caju em fogo de terreiro, depois do sucesso da produção.

É certo que há problemas referentes ao crime organizado nos rios da Amazônia, bem como, há notícias de tráfico humano para fins de exploração sexual. E quando tais questões chegam ao conhecimento do grande público é, geralmente, através da cobertura midiática e das investigações policiais em cada contexto, a exemplo do caso Bruno e Dom. Mas, mortes em massa, roubos e violência generalizada e nenhuma atuação efetiva do Estado está mais para ficção. A Amazônia não é terra sem lei. 

Em Pssica, os crimes ocorrem um após o outro, sem nenhuma consequência, banalizando o mal e pintando de vermelho o Pará. A minissérie certamente vai aquecer os corredores da COP-30. Escandalizados, os gringos talvez não coloquem nem os pés para fora dos caríssimos hotéis, pousadas e abrigos, fazendo cara de nojinho para um povo que vive — segundo a narrativa — à mercê dos piores horrores do mundo. Jogaram Pssica na Cop 30. 

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E só para finalizar minha ironia: Fernando Meirelles disse que se preocupou com o legado. Disse não confiar muito em contratar toda a mão de obra local. Preferiu trazer de São Paulo os líderes de cada equipe, abrindo apenas alguns espaços para o povo do cinema “regional”. Os profissionais do audiovisual paraense, indignados, reagiram nas redes: “sabemos fazer tudo isso”. As críticas choveram. Vão frescar logo com paraense? Eles que levaram só três kikitos para casa, no tradicional Festival de Cinema de Gramado?!

Em suma, os Meirelles fizeram arte. Aquela que incomoda e tira do lugar de conforto. Pssica é boa de muitas formas: seja por colocar o dedo em feridas ou pela excelência cinematográfica, coisa de primeira linha. É obra de gente genial, acostumada a fazer audiovisual de qualidade. Mas, ao final, fica o dilema: a Amazônia precisa ser retratada em sua complexidade, com suas dores, sim, mas também com sua força, diversidade, ordem, vitalidade e dignidade de seu povo. Produções como Pssica trazem visibilidade e levantam debates urgentes, mas também correm o risco de cristalizar imagens distorcidas de uma região que não se resume ao “mundo cão”. Cabe a nós, amazônidas, continuar a reivindicar narrativas mais plurais e verdadeiras, para que o cinema sobre a Amazônia seja não apenas espetáculo, mas também encantamento.

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